Sobre o Programa Vocacional - Literatura


O Programa Vocacional, da Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, é um programa que oferece formação livre em diversas linguagens artísticas através do encontro de Artistas-Orientadores e Artistas-Vocacionados, Os encontros ocorrem em espaços públicos espalhados por todo a capital. Para maiores informações, acesse o site:



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Este blog abriga textos de vocacionados da Biblioteca Gilberto Freyre (localizada no bairro de Sapopemba; e da Casa de Cultura de São Mateus. Os encontros foram orientados pelo escritor Tadeu Renato. Para conhecer o trabalho do artista, acesse o blog:




Nosso Segundo Livreto - Vocacional Literatura



Crônica - de Júlia Silva


Ando até que rápido, descendo as escadas, parando um pouco apenas por no final da escada estar um pai ajustando o patins da filha. Isso me trás tantas coisas a mente, que parece que o tempo passa em câmera lenta, só para eu poder absorver todas e não me importar com o que acontece ao redor. 
Lembro de como meu pai era. De quando eu aprendi a andar de bicicleta e ele estava lá, eu nem achava isso primordial eu só queria provar que conseguia e queria que ele sentisse orgulho de mim. E eu era tão pequena, e a bicicleta nem era minha, nunca tive uma bicicleta só minha. E eu penso no agora que nós nem conversamos, que tudo parece ter passado tão rápido, meu pai não sabe o que eu sou só sabe o que eu fui e deixei de ser. Lembro da minha prima que tinha um patins igualzinho aquele, será que eles nunca mudam os modelos ? E ela me ensinava a andar algumas vezes, mas eu nunca aprendia. Posso até sentir o desequilíbrio novamente, o jeito engraçado porém desesperador de se ter rodinhas no pés, parecia tão fácil ! Eu fiquei com a bicicleta e ela com os patins, e nós também nos afastamos e os encontros se tornaram raros, reduzidos a almoços de domingo onde só nos cumprimentamos quando chegamos e temos contato novamente na hora de ir. Vi como o dia estava bonito ótimo para estar fora de casa, é tão difícil eu sair de casa quando consigo parece que o tempo quer que eu nunca volte. 
Agora eu fico pensando na menina e seu pai. Será que ela teve que insistir muito para andar de patins ? Ele faz as coisas espontaneamente, por que quer mesmo, ou por que se sente obrigado ? E os protetores de joelho ? Será que foi o pai que pediu para ela colocar ? Ou talvez a mãe ? Ou ela mesma sabia que poderia se machucar e pôs sem ninguém pedir ? Como ela vai crescer e como seu pai vai lidar com isso ? Sabe querer ir a festas e voltar tarde, ter aquelas típicas amizades de desconfiar. Ele vai saber lidar com ela e todas as coisas que a envolvem ? Pensando que até ontem ela era uma garotinha que precisava de ajuda para ajustar o patins cor de rosa. Será que esse dia vai ficar marcado para eles ? Ou será mais um dia que passou, num piscar de olhos, em sopro de vida que se acaba e se reinicia ?

Ou só sou eu o tempo todo ? É só a minha mente que está dramatizando demais uma cena tão simples : um pai ajustando o patins da filha, ela sorrindo pra ele agradecida. O tempo ao meu redor volta ao normal, e eu entendo isso ao ouvir a voz de outras crianças brincando. Vejo como tudo passa rápido, enquanto caminho mais devagar, as pequenas coisas deixando marcas em nós, que não sabemos o por que de tão inexplicáveis. 

Poesia Visual


SONETO

"Do Outono ao Inverno"


Versos meus, que de tão teus me fragilizam
Tempo efêmero, de tão pouco me lapidaram
Nesse inverno, sentimentos me enfatizam
Desejo, razão e exaustão me gritaram


Mãos trêmulas as minhas ao lhe ver
Do apego, que de tristeza me consome
Linha tênue, do sofrer ao meu viver
Por que meu vício ao ler teu nome/sobrenome?


O descaso, que de teu olhar me indicam
Alma ferida, do desamor fora condenado
Do que passastes me soa inteligível


Seus corações de tanta mágoa desmitificam
Homens aqueles que dissestes nunca ter amado
E versos meus que de tão teus tornou-se imersível.

de Letícia Santos

Versos de Luís Rodrigues

Companhia das cinzas



A algo brilhante nas cinzas da cidade PÓ
Não pode ser feliz
Não se pode ser feliz
Se pode ser feliz se sua felicidade for a incerteza, a dor, a morte.
Trabalho.. Trabalho? Trabalho!
A palavra usada para tortura
O significado mais repugnante dentre as palavras
Tortura, trabalho. Trabalho ou tortura?
A luta pela sobrevivência a sobrevivência luta contra ti
Derruba, machuca
A trabalhura de um povo tristalho?
Não.. Não dessa vez.
Alguém, alguém novo! Quem?
Um felizalho maníaco
Na geração das cinzas surge a faísca
Feliz, louco, maluco, sujo, estranho.. Desencaixado talvez?
Onde apenas as peças impostas se encaixam. Lá está ele, felizalho, sozinho.

Ele e Ela - um conto de Júlia Silva

Ele observa atento, o movimento da feira pela janela. Tanta coisa acontecendo bem abaixo de seus olhos, enquanto ela andava inquieta de um lado para o outro.·.

- O que está fazendo? - ele pergunta, já estirado e preguiçoso sobre a cama de casal.
- Arrumando ... Arrumando minhas coisas - ela diz como se não fosse nada sem olhar para ele, pegando um livro marcado pela metade em cima do criado mudo ao lado do abajur. Sua voz saiu calma e ficou abafada pela barulheira lá de baixo.·.
Depois de pouco pensar nas palavras da amada uma pergunta lhe atinge o cérebro como um clarão.·.
- Arrumando pra quê? - ele levanta a cabeça para olha-la.
Ela dá um suspiro arrogante, como quem não quisesse dar um suspiro.
- Eu vou embora - fala por fim.
Ele levanta ficando ereto como raras vezes ficará a observando ajeitar uma mala.·.
- Mas... Mas por quê?
- Isso não está funcionando mais.
- Isso o quê? - o rapaz pergunta como uma criança chateada.
- Nós - Ela diz apontando para si e depois para ele - Não seja ingênuo achou que ia durar para sempre?
Ele cruza os braços e abaixa a cabeça escondendo o semblante triste, desde quando ela se tornou tão fria?
- Posso pelo menos saber para onde você vai?
Ela o olha irônico depois voltando a pegar variadas roupas e socar na mala.·.
- Fiz alguma coisa de errado?
- Não, só... Sei eu sou complicada... Não é você sou eu.
- Inacreditável - Ele diz bagunçando os cabelos - Você diz que detesta clichês, mas acabou de dizer um.
- Você não me conhece tão bem quanto imagina.
- Não conheço?! - Ele diz indignado - Até ontem eu era o único que a compreendia...·.
Ela morde o lábio frustrada, fechando os olhos, ele a encarando querendo respostas coesas.·.
- As coisas mudam. Você é ótimo sabe, mas... - Ela não sabia mais concluir a frase, nem ela lembrava os motivos de deixá-lo. Eles migraram agora a cozinha.
- Mas... ? - Ele acariciou a bochecha dela com o polegar levando uma tapinha na mão em seguida.·.
"Olha o mamão!”, "Banana prata madura!" gritavam os feirantes lá embaixo.·.
- Preciso de um tempo, pensar, refletir... - Ela falou se afastando dele e pegando uma maçã da fruteira.
- Você sabe que isso não faz o menor sentido não é?
- Sabia no que estava se metendo quando me conheceu, tentei te avisar pra se afastar. Eu não sei de muita coisa, não tenho certezas, até parece que não me conhece...
- Acabou de dizer que não te conheço! - falou levantando os braços acima da cabeça - A mais ou menos, dois minutos atrás!
Ela rolou os olhos com desdém, do jeito que ele detestava, parecia que não se importava mais.·.
- Olho, eu sei que você não quer entender e está bravo.
- Eu entenderia alguma coisa se você explicasse algo direito - resmungou.
- Não tem o que explicar... Só acabou.
Aquilo foi o suficiente para quebra-lo ao meio.
Ela fez a melhor cara de compreensão que pode e afagou o ombro dele. Deu um beijo rápido em sua bochecha, dizendo:·.
- Não deixe que isso atrapalhe de seguir em frente, não podemos deixar que isso impedisse de evoluir.·.
Ele nada respondeu, permaneceu paralisado.
Ela sorriu torto para o silêncio e foi ajeitar mais algumas coisas na mala que ela sabia que não ia caber tudo. Foi-se indo devagarinho o barulho das rodinhas trincando no chão, ela abriu a porta da frente, olhou para trás apenas para observa-lo desolado no meio da cozinha ainda em pé com os olhos fixos em algo. Escancarada ela deixou a porta prevendo que ele correria atrás dela... Pois não é que correu?
- Você esqueceu o cachecol que eu te dei! - gritou ele para ela em meio às pessoas que compravam as mais diversas coisas na feira.·.
Ela olhou para trás avistando o pano xadrez em suas mãos.·.
- Pode ficar... Ou melhor, eu volto para buscar depois! - Ela gritou se afastando mais e mais.
- Quer dizer que você vai voltar? - exclamou na esperança.
- Você entendeu o que eu quis dizer... - falou ela claramente no barulho de vozes misturadas das outras pessoas, ela não o percebeu murchando novamente.
Há três anos ele a conheceu e em pouco tempo tudo se tornou "nosso" tudo se tornou "nós". Por que agora havia coisas "dela" e coisas "dele”? Tudo se partiu tão rápido.
Ele ficou a pensar nisso, com o cachecol em suas mãos, parado no meio da feira que ele lembrava fazer com sua mãe, observando estática a mala vermelha (a mala que era dele) enquanto as pessoas esbarravam em seu corpo como se ele só fizesse parte do cenário.·.
- E aí moço vai uma banana prata? - O feirante o tirou de seu transe.·.

- Meia dúzia, por favor - ele disse limpando a lágrima que escorreu por seu rosto.
Ele logo voltou para seu apartamento e observou as coisas que eram dele e as coisas que eram dela e em como as duas só faziam sentido em sua cabeça por terem sido um só.
E a feira continuou com sua gritaria e barulheira depois partiu. Ele observou tudo isso da janela tentando entender que a feira voltaria no outro sábado sendo tudo igual era ele que tinha mudado. E ela também.